Relembre o dia em que Eurico Miranda ‘peitou’ Pablo Escobar

Na Libertadores de 1990, Vasco da Gama e Atlético Nacional (Colômbia) se enfrentaram pelas quartas de final da competição.

A partida, no entanto, ficou marcada por ameaças, suborno à equipe de arbitragem e até mesmo ao folclórico Eurico Miranda peitando as ambições de Pablo Escobar.

O confronto

No dia 22 de agosto, o cruzmaltino não fez valer o apoio da torcida que lotou o Maracanã e não saiu do 0x0 com o time colombiano. Assim, a vaga seria decidida na semana seguinte, na cidade de Medellín.

O Atlético venceu o jogo por 2×0, mas o resultado acabou sendo impugnado. O motivo?

“No dia da partida, estávamos tomando café da manhã no hotel e apareceram três senhores e disseram que queriam arbitragem imparcial, que o povo colombiano precisava de uma vitória. E aí nos ofereceram dinheiro”, relembra o assistente Otello Roberto ao Globo Esporte.

O trio de arbitragem ainda contava com o juiz Juan Cardelino e o segundo bandeira José Martinez. Segundo os relatos da época, homens tentaram subornar o trio. Porém, a proposta não foi aceita.

O ato, no entanto, chegou aos ouvidos de Eurico Miranda, vice-presidente do Gigante da Colina na época, que forçou a Conmebol e fez com que o jogo fosse anulado (o que será explicado mais abaixo).

Cartel Futebol Clube

O Cartel de Medellín, comandado por Pablo Escobar, viveu seu auge entre as décadas de 1980 e 1990. Com o tráfico de cocaína para os Estados Unidos a todo vapor, o grupo chegou a arrecadar cerca de 30 bilhões de dólares por ano.

Pablo, por sua vez, usou seu dinheiro para se tornar mais poderoso pela Colômbia e o futebol foi um desses meios. Neste mesmo período, o Atlético Nacional passou a brilhar em competições continentais.

Em 1989, por exemplo, a equipe conquistou sua primeira Libertadores da América — Los Verdolagas também foram campeões na edição de 2016 e vice em 1999, quando foram derrotados pelo Palmeiras.

Uma suposta ligação de Pablito com o futebol, porém, foi desmentida pelo filho de Escobar, Juan Pablo Henao, em entrevista ao G1. Além do mais, segundo ele, o pai torcia para o rival, o Independiente de Medellín.

Independente disso, é fato que, um ano antes do jogo entre Vasco e Atlético, o árbitro Álvaro Ortega foi assassinado em Medellín. Sua execução foi ligada a apostadores e membros do tráfico.

Ele havia participado do jogo entre Independiente de Medellín e o América de Cali, que tinha ligações com os irmãos Orejuela, rivais de Pablo. O crime, inclusive, fez com que o campeonato colombiano fosse cancelado.

“Não foram poucos os árbitros que tiveram revólver na cara. Nenhum árbitro gostava de apitar na Colômbia, as federações não deixavam”, recorda o ex-árbitro brasileiro Renato Marsiglia.

“Não era novidade que o narcotráfico colombiano comandava o Nacional e o América de Cali. E tinha muita coisa de aposta. A gente ouvia falar em reuniões com árbitros colombianos. O primeiro lateral valia US$ 100, o primeiro amarelo, US$ 500. Se o pênalti valia US$ 10 mil, imagina o resultado do jogo? E esse dinheiro vinha do narcotráfico. A relação era essa”, prossegue.

Às vésperas do confronto

Com todo esse pano de fundo, era de se esperar que o jogo do Vasco pudesse ser permeado de problemas. Por conta disso, Eurico Miranda decidiu se prevenir e tratou de levar três advogados para acompanhar a delegação até a Colômbia — segundo o GE, normalmente, apenas um profissional se fazia presente nas viagens, mas Eurico sabia que alguma coisa poderia acontecer.

Os “imprevistos” começaram logo no desembarque, quando o meia Tita e o técnico Zagallo tiveram problemas com o visto para entrar no país. O Velho Lobo, aliás, chegou a ser ameaçado de prisão no aeroporto de Medellín. Já no dia anterior ao jogo, o vice-presidente jurídico do Vasco, Paulo Reis, se recorda de outro fato um tanto quanto curioso:

“Na véspera do jogo à noite, depois do jantar, sentei com Tato e mais dois jogadores para bater papo no salão nobre do hotel. Chegou um casal, uma loira lindíssima, o cara sentou entre nós e começou a puxar assunto. Chegou uma hora em que disse: ‘Olha, eu tenho uma festa no meu terraço, estejam à vontade’. Ele abriu uma nota, não lembro se era de dólar, o que era, mas botou pó nela. ‘Vocês são nossos convidados’. E isso tudo com policiamento enorme ali no nosso hotel.”

O bandeirinha Otello Roberto diz que tem apenas ciência do que houve com ele ou com os outros árbitros. “Disseram que eram uma ordem [aceitar o dinheiro]. Nós não aceitamos. E assim nos disseram que, se entendessem que fôssemos mal ou que beneficiassem o Vasco da Gama, haveria represália. Eles nos disseram: ‘Está perfeito, entendam como queiram'”.

À época, segundo o GE, jornais brasileiros repercutiram supostas frases de Eurico Miranda, que afirmou que a proposta ao trio de arbitragem foi feita por homens encapuzados. Além do mais, eles teriam sido ameaçados por telefone e até mesmo um suposto sequestro-relâmpago teria ocorrido, embora não exista registros disso.

Em campo, a arbitragem foi vista como parcial, sempre favorecendo o time colobiano. De acordo com o ‘O Globo’, o vestiário do estádio “parecia um corredor da guerra do Golfo Pérsico, com cerca de 20 guardas armados de metralhadora”.

No fim, o jogo acabou 2×0 para o Nacional de Medellín. Mas o confronto não acabou por aí.

Eurico contra todos

Após o jogo na Colômbia, Eurico Brandão, filho de Eurico Miranda, lembra que o pai foi até o Paraguai, na sede da Conmebol, para tentar a anulação da partida. “Meu pai vivia repetindo ‘a gente vai anular o jogo’. Pois o juiz foi ameaçado, a equipe foi ameaçada. Tinha policiais armados dentro do vestiário”.

O julgamento demorou mais de um dia para ter seu veredito. Além da suspensão do resultado, os dirigentes do Gigante da Colina conseguiram remarcar o jogo. Vasco e Nacional voltariam a se enfrentar em 13 de setembro, desta vez no estádio Santa Laura, no Chile.

“A reunião foi uma discussão violenta entre os dirigentes do Nacional de Medellín e o Eurico. Eurico quase bateu neles. Ele não era fácil também”, relembra Hildo Nejar, ex-dirigente da Conmebol.

Por fim, no terceiro duelo entre os times, a equipe comandada por Zagallo acabou sofrendo um novo revés, desta vez por 1×0. Los Verdolagas acabaram enfrentando o Olímpia, do Paraguai, na fase seguinte, uma reedição da final continental do ano anterior.

O mando do Nacional foi levado para Santiago, visto que a Colômbia foi proibida de sediar jogos de torneios sul-americanos por 12 meses por conta do ocorrido. Os paraguaios avançaram e se sagraram campeões ao bater o Barcelona de Guayaquil na final.

À Eurico Miranda restou a mística de ter batido de frente com as ambições do narcotráfico e sobrevivido para contar a história. O dirigente, que se tornou presidente do Vasco da Gama anos mais tarde, faleceu em 12 de março de 2019, aos 74 anos, vítima de câncer no cérebro.

Fonte: Aventuras na História

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