A polêmica está lançada. De um lado, boleiras e confeiteiras que fazem topo de bolo com motivos de futebol, principalmente os quatro grandes do Rio de Janeiro: Flamengo, Fluminense, Vasco e Botafogo. Do outro, empresas de licenciamento de marcas que representam os clubes e não querem ter prejuízo, mesmo quando se fala em aniversário de crianças, muitas delas fãs do time em questão. É só dar uma busca no site de pesquisas que se encontram centenas de bolos com motivos da maior paixão do brasileiro: o futebol. E afinal, quem está com a razão?
De acordo com a advogada especializada em Propriedade Intelectual, Elisa Santucci, é uma surpresa essa informação. “Sempre fiz festa para os meus filhos e comprávamos caixas de produtos licenciados, para os quais os fabricantes pagavam royalties. Agora, o topo do bolo, isso é um extremismo, um alarmismo. Sem contar que cobrar royalties pelo uso do escudo do time no topo de um bolo, na minha opinião, depõe contra o clube, pois é uma medida muito antipática para com seus fãs. Não creio que seja interesse do clube fazer isso porque, chegar a este extremo, será uma publicidade muito negativa. A confeiteira cobra pelos ingredientes e pela confecção do bolo, mas o topo do bolo, quem escolhe o desenho é próprio cliente”, disse Santucci, acrescentando que a intenção pode ser chamar a atenção para a importância da marca.
A advogada cita um exemplo. “Se você tem uma loja de cupcakes, aí sim pode estar fazendo uso comercial. O seu apelo para venda do produto é o uso da marca, é o escudo. Se a sua loja vende docinhos, cupcakes, bombas com os escudos do Vasco e do Flamengo, eu até vejo a possibilidade de uso comercial e a reprodução indevida. E, da mesma forma, qualquer outro uso que você faça dos copos, pratos, toalhas, lembrancinhas, tudo isso necessita de licença, para festas ou não. Se faz uma caixinha decorada com a marca do Vasco para vender em escala industrial ou numa birosca da esquina, ainda assim faria uso comercial e supostamente você está vendendo mais porque aquela caixa tem uma marca, a do clube. Até aí eu vou'”, explica.
Segundo a profissional, porém, notificar quem faz bolo caseiro é muito mais complicado. “Normalmente, a boleira não vende um bolo do Flamengo, do Fluminense ou da princesa Frozen. Ela vende um bolo e quem escolhe o topo é cliente. Não acho razoável os clubes irem atrás de alguém por conta de um topo de bolo. No caso das boleiras, uma possibilidade de defesa seria usar a excludente prevista no art 132 da Lei 9279, de 96, a Lei da Propriedade Industrial. O inciso 4 do art 132 diz o seguinte: o titular da marca não poder impedir a citação da marca em discurso, obra científica ou literária ou qualquer outra publicação, desde que sem conotação comercial e sem prejuízo para seu caráter distintivo”.
A profissional explica ainda sobre o artigo 132 , e como ele poderia servir na defesa de confeiteiras e boleiras. “Então, nesse caso, eu acho que as boleiras, se fossem minhas clientes, eu faria questão de defender em juízo com base nesse artigo 132, inciso 4, por equidade. Às vezes, a equidade é algo que se aproxima do texto da lei, não está sendo dito na lei, mas está na intenção da lei de proteger este tipo de uso, muito específico, como não constituindo, propriamente, infração marcária”, afirma.
Prática enraizada na cultura popular
Professor de Direito Constitucional e consultor jurídico, Edgar Portela Aguiar, que é tricolor, discorre sobre o tema de que se confeiteiras devem ser penalizadas por venderem bolos decorados com escudos de clubes de futebol. O profissional explica que o Código Civil, nos artigos 186 e 927, estabelece que a obrigação de indenizar só existe quando alguém causa dano a outrem. No caso das confeiteiras, não há qualquer dano significativo aos clubes, o que torna desproporcional a aplicação de sanções.
“Mesmo que se alegue algum prejuízo mínimo aos clubes, as multas aplicadas frequentemente superam o valor do próprio produto. Isso fere o princípio da proporcionalidade, já que o artigo 944 do Código Civil determina que a indenização deve ser compatível com a extensão do suposto dano causado”, diz o consultor Ele acrescenta ainda que: “o crime previsto no artigo 190 da Lei nº 9.279/96 não se aplica aqui, pois a conduta das confeiteiras não gera lesão relevante. Fora isso, pelo princípio da adequação social, práticas aceitas e integradas na cultura, como a venda desses bolos, não deveriam ser alvo de punição penal. A meu ver, penalizar essas profissionais é desarrazoado e ilegal. Desde que o mundo é mundo, pequenas confeiteiras vendem bolos decorados com escudos de clubes, uma prática enraizada na cultura popular”.
Bandeira da legalidade
De acordo com o diretor jurídico da Abral – Associação Brasileira de Licenciamento de Marcas e Personagens, Márcio Gonçalves, a instituição levanta a bandeira da legalidade e da proteção às marcas e personagens.
“Concentramos os problemas da pirataria no ataque aos grandes volumes. Nosso foco é apreender os containeres lotados de pirataria, que chegam pelos Portos brasileiros, ou mesmo os fabricantes e grandes distribuidores de pirataria no Brasil. Cada clube tem a sua política e sabemos que em muitos casos os adereços de clubes futebol são vendidos de forma irregular (sem a devida licença), afirma o profissional, que há 30 anos trabalha nessa área.
Vale ressaltar que a Abral é uma entidade sem fins lucrativos que atua fortemente na divulgação, no desenvolvimento e na defesa do licenciamento, trabalhando para orientar e reunir todas as frentes deste negócio: licenciadores, agentes, licenciados, fabricantes, distribuidores, varejistas, dentre outros.
Atitude descabida
“Sou mãe de um atleta da base do futebol e para mim é ilógico ser proibido tal questão. Uma criança apaixonada por futebol faz aniversário e não ter o tema do seu time do coração por não poder usar a imagem do clube é descabida. Daqui a pouco as festas não terão tema. A Disney, o Flork e até os palhaços vão querer direitos autorais. A pessoa que está vendendo o bolo ou a decoração está vendendo o produto e não a imagem. A imagem é apenas o desejo de ter algo representativo que a criança ama no dia mais importante do ano”.
T.C, cabeleireira e mãe de atleta
Sem palavras
“É tão absurdo que eu até achei graça, sabia? Gente, não tem cabimento uma coisa dessas. Onde já se viu? Eu acho absurdo total. Estou até sem palavras. Realmente, agora a gente vai ter que fazer bolo de quê? Só com frutinhas, florezinhas, plantinhas em cima, porque não pode mais usar nada. Graças a Deus que eu só faço bolos assim para casa, para pessoas muito amigas, essas coisas assim. Mas, realmente, é um absurdo total. Isso não pode ir para frente de jeito nenhum. Não tem cabimento. Poxa, a pessoa ganhando seu dinheirinho, né? A vida está difícil para todo mundo. E aí, pronto, eles vão e cortam o barato assim, do nada”, Berenice de Souza Caetano, de 72 anos.
Procurados pela reportagem do jornal O DIA, os Clubes de Regatas do Flamengo e o do Vasco da Gama foram enfáticos. “Não vamos nos pronunciar sobre o assunto”. O Fluminense Futebol Clube foi na mesma linha: “Não vamos nos posicionar”. Já o Botafogo não respondeu aos inúmeros telefonemas e envio de mensagens via whatsapp feitos pela reportagem.
Fonte: O Dia