O vascaíno Cabeça estava a postos assistindo à live do (também) vascaíno Casimiro, à espera de que o melhor acontecesse. Poucos dias antes, o badalado influenciador havia ganhado de um amigo um boné estampado com o logo da Vasconha, a torcida maconheira do Vasco, e, apesar de Casé dizer ser careta, Cabeça acreditava que, de repente, ele poderia botar o chapéu ao vivo.
Dito e feito. O Vasco venceu o Bahia em casa pelo Brasileirão da série B naquele 15 de maio. Casé repercutia o feito do time, como de praxe, até que um torcedor abriu o microfone e gritou “Vasconha”. Num pulo, o boné já estava na cabeça de Casimiro -e o que era, até então, uma brincadeira de amigos, precisou correr contra o tempo para atender à gigante demanda que surgiu. Vascaínos, maconheiros, vascaínos maconheiros e maconheiros não-vascaínos queriam o boné da Vasconha.
Hoje, a Vasconha é empresa. Tem CNPJ, recolhe impostos e demanda de seus organizadores muito mais do que a amizade descompromissada que os uniu. Cabeça, como é apelidado Vinícius Santos, 40, é um deles. Ele, que se descreve um sujeito “muito vascaíno e muito maconheiro”, alega: “Pra aturar o Vasco ultimamente, só fumando uma bomba, né?”
A Vasconha não é uma torcida organizada, nem uma torcida destinada apenas aos adeptos da maconha, apesar de o nome sugerir o contrário. Cabeça descreve o grupo como amigos vascaínos que se juntam e querem curtir o jogo em paz. Alguns fumam; outros simpatizam com a causa. No estádio, querem mesmo é ver o Vasco ganhar. Fora dele, cada um tem sua profissão, seus filhos e família. Sem estigma.
Churrasconha
Cabeça recebeu o UOL na improvisada sede da torcida para aquele dia 12 de junho. A partida era importante, contra o líder da série B, o Cruzeiro. Os membros da Vasconha sempre se reúnem para um churrasquinho antes dos principais jogos do Vasco em casa. Aquela partida, porém, não estava marcada para São Januário, o estádio do Vasco, mas para o Maracanã. A troca de campo não impediu que a preleção cannábica dos torcedores fosse realizada: o local escolhido foi um bar de esquina nos arredores do “Maior do Mundo”.
Cabeça e outros membros da Vasconha subiam em árvores para amarrar os cordões que hasteavam os bandeirões da torcida. Os dizeres se espalhavam: “Com o Vasco, de ponta a ponta”, era a maior delas. Em frente ao bar, estava erguido o pendão com a homenagem ao padrinho da torcida, Pepe Mujica, responsável pela legalização da maconha no Uruguai.
Os becks eram bolados ali mesmo, sem muito problema por parte dos vasconheiros. Na hora de fumar, no entanto, buscavam um lugar mais escondido. As bandeiras reunidas chamavam a atenção de quem passava —alguns cruzeirenses pediram permissão para tirarem fotos ao lado delas. O grupo permitiu. “Rivalidade só dentro de campo”, diz Cabeça.
In memorian: Varanda Sagrada
“A Vasconha existe desde que o primeiro maconheiro pisou em São Januário e pensou: ‘preciso de um lugar para fumar'”. É como Eduardo, de 35 anos, descreve o início do grupo. Todo mundo que quiser ser Vasconha pode, segundo ele.
Quando esse maconheiro chegou no estádio do Vasco e procurou o lugar para acender seu baseado, encontrou a Varanda Sagrada, que hoje está estampada no manto da Vasconha. Varanda Sagrada é como foi apelidado um espaço aberto no alto de São Januário, similar a uma varanda, que, sem querer, se tornou a primeira sede do que viria a ser a Vasconha.
O lugar era aberto, um pouco mais reservado e longe do público das arquibancadas. As pessoas que, ali, assistiam aos jogos do time ficaram amigas. “Acende um que é gol”, diziam os vasconheiros. A superstição culminou no nome Vasconha. O cântico, cuja melodia é uma paródia da música ‘Sorte Grande’, da Ivete Sangalo, surgiu pouco depois. Hoje, é ouvida por todo o estádio quando o Vasco ganha. Por quem fuma, por quem não fuma, por quem entende e por quem nem sabe do que se trata.
“Vasconha, Vasconha, Vasconha / Sem maconha, o Vasco não ganha”
A Varanda Sagrada foi demolida em 2011, em meio a uma reforma quase que total do estádio. Ela deu lugar a camarotes, fazendo com que membros da Vasconha se dispersassem entre as arquibancadas. Ainda assim, ela estampa as bandeiras da claque, como o clássico onde tudo começou.
Cálculo de risco
Sem a Varanda Sagrada, os cuidados ao acender um baseado dentro dos estádios são redobrados. Assim que se acomodam no Maracanã, os vasconheiros começam a calcular a melhor forma de evitar incômodo de torcedores que estão por perto e, claro, de não chamar a atenção de policiais e stewards. Na partida a qual o UOL assistiu junto da torcida, o primeiro passo do grupo ao chegar ao local demarcado foi calcular a direção do vento, para que a fumaça não chegasse aos narizes indesejáveis.
As bandeiras da Vasconha ficam de fora do estádio. Primeiro, porque não é uma torcida registrada. A autorização para estender bandeirões e faixas é concedida às organizadas, apenas. Outro motivo, Cabeça explica, é não “dar pala” — “dar na cara”, na gíria maconheira. “Quando a gente quer levar bandeirão, o que é raro, pedimos a amigos de organizadas levarem para a gente”.
Não é sempre, ainda, que o grupo leva erva para dentro do estádio. E nem todo mundo que faz parte da torcida fuma maconha. O que todos os adeptos da Vasconha têm em comum, entretanto, é o apoio à descriminalização da droga no Brasil —como acontece no país vizinho Uruguai.
Pedro (nome fictício) é um exemplo: ele participou do churrasquinho da Vasconha com o filho de dois anos. Pediu para não ser identificado porque, mesmo afirmando não fumar beck, acha que a família o julgaria por participar da torcida. “Me sinto em paz na Vasconha. Não fumo, mas é com essa turma que me sinto seguro para trazer meu filho no estádio”.
Meia hora antes de o apito inicial soar no Maracanã, a turma da Vasconha recolheu os bandeirões e se reuniu para entrar no estádio. No caminho entre o bar e o Maraca, os torcedores distribuíram bexigas pretas para crianças vascaínas que tinham o mesmo destino: torcer pelo Vasco.
Getúlio neles
O gol do Vasco contra o Cruzeiro veio entre o primeiro e o segundo baseado que Cabeça e seus amigos deram um jeitinho de acender no Maracanã. Getúlio mergulhou de cabeça ao receber o passe cruzado de Nenê e abriu o placar, para delírio da torcida. Delírio maior ainda porque, no Rio de Janeiro, os adeptos à maconha apelidam de Getúlio “aquele baseado muito do mal apertado, baixinho e gordinho”.
A gíria nada tem a ver com o atacante do Vasco, que passava por fase conturbada —estava há 17 jogos sem marcar— e garantiu um sopro de alívio com a decisão daquele dia. Ainda assim, para a Vasconha, nada é por acaso: “sem Getúlio, o Vasco não ganha”, ri Cabeça.
Cabeça não segurou o choro, descrito por ele como um choro de emoção, depois de dois anos pandêmicos sem ir ao estádio assistir ao Vasco jogar. “Fazia quase três anos que a gente, da Vasconha, não se reunia e fazia um churrasquinho. Aquele dia foi o reencontro de amigos que não se viam há muito tempo. Seria muito ruim se a gente perdesse naquele dia, por tudo o que esse reencontro significava. Estava perto dos meus amigos, estava feliz. O gol me deu uma emocionada”.
Mujica, o padrinho
Quando o apito final soou no Maracanã, a tímida torcida do Cruzeiro que ali estava também se embalava com o cântico mais famoso da torcida vascaína no momento. As celebrações vasconheiras continuavam no mesmo bar, onde os bandeirões voltaram a ser hasteados.
Um deles, talvez o mais famoso da Vasconha, virou até grafite pelas ruas do Rio de Janeiro: o que estampa o rosto do uruguaio Pepe Mujica. A adoração pelo uruguaio é tanta que Rafael, o Barba, de 35 anos, decidiu levar o bandeirão da Vasconha para o próprio autografar.
A romaria cannábica rolou em 2017, quando Barba e mais três amigos viajaram a Montevidéu para a Expo Cannabis que aconteceu naquele ano. A ideia de pedir bênção ao padrinho foi de Barba, que encontrou na internet um vídeo explicando que existia a possibilidade de chegar até a casa do ex-presidente, entre a capital uruguaia e a cidade litorânea de Punta Del Este. Ao UOL, ele relembra a aventura.
O grupo seguiu por uma rua de terra, até ser parado por seguranças de Mujica. “Eles nos pararam e disseram: ‘o senhor Mujica já é um idoso, está descansando com sua senhora. Voltem amanhã’. Não acreditei naquilo. Então existia mesmo uma chance de a gente encontrar o cara?”, conta Barba.
No dia seguinte, Barba diz ter feito os amigos acordarem de madrugada rumo à casa do padrinho. “Chegamos na mesma guarita, e os guardas pediram que a gente esperasse, porque já tinha duas pessoas conversando com ele. Ficamos lá. Até que, uma hora, passa o fusquinha do Mujica. Não acreditei. Era o chefe de segurança dele, e o cara disse que a gente teria de ter marcado hora para conversar com ele. Só que, em pouco tempo, ele sairia de carro -quem sabe não falaria com a gente?”.
“Pouco depois, Mujica sai de carro. Arriei a bandeira da Vasconha na frente dele, esperando que parasse e se reconhecesse nela. Ele olhou, mas seguiu viagem sem falar com a gente. Acho que faltou atitude, a gente deveria ter ido até ele, insistido. Até tentamos seguir o carro dele, mas perdemos o rastro. Foi por pouco.”
Virada de chave
A tal velha guarda da Vasconha, da qual Cabeça e Barba fazem parte, precisou virar a chave depois das partidas citadas nesta reportagem. Com a repercussão do vídeo de Casimiro, o grupo transformou a torcida em empresa e em loja on-line; testou ferramentas de venda e entrega —Cabeça explica que a Vasconha recebe pedidos de todo o Brasil, “até de quem não é vascaíno”.
Cabeça prefere não expor o percentual no aumento das vendas, mas o descreve como “bastante significativo”. O motivo da discrição é a prevenção contra o tal “olho grande”. Agora, ele conta, é necessário conciliar os empregos com a torcida e as burocracias que a envolvem. Ainda assim, é consenso entre todos os entrevistados por esta reportagem que é melhor assim. Barba acha que o estigma só vai cair com a visibilidade.
“É importante mostrar que a gente é da paz. A gente só quer ser feliz e ver o Vasco ganhar. Ah, fumar um baseado também, mas no nosso canto; sem incomodar ninguém. A gente é de boa. Quem quiser vir, é só vir”.
Fonte: UOL